Galos Insones | Capítulo 1

Galos Insones, livro do acadêmico ubajarense Walter Parente

25 de janeiro de 1984. Um velho ventilador de teto espalha mais barulho que vento naquela quente enfermaria de mulheres. Uma menina de nove anos dorme. O sono intranquilo. Vira-se de vez em quando, deixando a mãe preocupada com a possibilidade de que venha sair o cateter, que está preso em um dos braços, por onde lhe são infundidos soro e medicamentos. Guardiã e atenta, sentada em uma cadeira improvisada, a mãe contempla enternecida a filha. Diligente, desvia os olhos apenas para examinar o frasco de soro; está atenta ao volume e a cada gota que cai. Seguidamente lhe põe a mão na testa. “Graças a Deus, a febre não voltou”, pensa. Estava ali apenas como acompanhante, mas, quando chegou, recebeu também atendimento de emergência; trazia arranhões e hematomas no rosto, nos braços e no pescoço, havia um corte no lábio superior, o olho direito estava circundado por uma grande mancha roxa, na orelha esquerda sobressaíam três pontos cirúrgicos, postos ali para cingir um corte que dividira o lóbulo ao meio. Para a lesão maior e mais profunda, não recebera tratamento: uma ferida na alma, cuja dor se tornara intermitente e perturbadora, como era a estridulação dos grilos nas noites invernosas da fazenda. Ela ergue a cabeça, atraída por umas palavras vindas de uma TV suspensa num suporte de ferro preso à parede: “… só assim, teremos liberdade plena!” Era um político exaltado que, de cima de um palanque, discursava para uma multidão. Políticos e artistas de televisão o sucediam. Eram muitos os discursos, mas todos se encerravam com as mesmas palavras de ordem: “Diretas Já!” De quando em quando, a plateia era focada, podendo-se ler em muitas das faixas exibidas: “Parabéns, São Paulo, pelo seu aniversário!” A multidão ovacionava cada discurso. Ela sentiu inveja daquelas mulheres que apareciam em meio à imensa plateia. Mostravam-se atentas e felizes. Se estavam ali sorridentes e preocupadas com o rumo do país, por certo, os problemas de cada uma eram de pequena monta, a ponto de serem postos em segundo plano. Todas elas podiam usufruir dos maiores bens: a paz e a liberdade. Podiam ir atrás de seus sonhos. Ela, não! Sonhar, não podia! Como também não podia livrar-se de seu pesadelo, do jugo de seu impiedoso marido, que lhes infligia, a ela e à filha, suplícios e privações havia tempo. Sentia-se culpada pelo sofrimento da filha. Muito se lamentava por ter aceitado se casar com um homem que não tardou a se mostrar inescrupuloso e sádico. Nos primeiros meses do casamento, a lubricidade desmedida inibia a perversidade, mas, com o passar do tempo, a gravidez foi-se acentuando e os desejos libidinosos foram se arrefecendo, sobrando ao marido apenas o espírito selvagem e mesquinho. O sofrimento veio lhe bater à porta, com mala e cuia. A princípio, os suplícios eram amenos e espaçados; ele se contentava em ofendê-la apenas verbalmente; alguns empurrões, só de vez em quando, mas a coisa foi-se amiudando e tomando outro rumo. As bebedeiras se tornaram frequentes, e as agressões físicas também. O marido não trabalhava. Vivia a dizer que não carecia de trabalhar, que não era jumento para carregar fardos, o bom mesmo era viver do suor dos que tiveram o azar de nascer pobres. Vivia da renda advinda de duas propriedades. Ultimamente cultivava o hábito diário de rumar, após o almoço, para o Bar Pedra Branca, de Lenimberg Benevides, onde se dedicava ao carteado. Dali só saía à boca da noite, indo invariavelmente para o Refúgio do Amor de Mundinha Pedrosa. Quando, por uma razão muito forte, fugia desta rotina, Mundinha Pedrosa e suas colaboradoras não conseguiam disfarçar o descontentamento; em cada semblante estava estampada a tristeza e o desalento. A desconfiança, isto é, a insegurança, recaía na possibilidade de o fazendeiro ter-se bandeado para o Cabaré da Lolita. “Praga ruim! Cascavel invejosa!”, exasperava-se Mundinha Pedrosa. No entardecer seguinte, quando o eminente cliente aparecia cheio de ânsia, desejando recuperar o que deixara de fazer na noite anterior, a alegria no estabelecimento recrudescia. As colaboradoras trabalhavam com satisfação; algumas até se esqueciam dos infortúnios que as levaram até ali. Assim, a clientela lhe agradecia pelas raras ausências. Este bem-querer ao cliente tinha uma razão: ele era um benemérito da casa, um provedor. A maior parte da renda que recebia, ele destinava àquele empreendimento, que lhe dava como retorno a imensurável devoção de Maria Ternura, que, apesar do nome, não negava sua predileção pelo amor selvagem. “Carícia é pra virgem! Umas bofetadas no corpo sempre me aquecem a alma”, defendia ela. Este gosto dissoluto atraía o fazendeiro. Para ele, Maria Ternura, decisivamente, era diferente de todas as mulheres que conhecera, sobretudo de sua esposa. “Ela é uma mulher de verdade. Trepa porque gosta!” O marido regressava para casa quase sempre nas duas primeiras horas da madrugada. E lá estava a esposa para lhe esquentar a comida e ouvir insultos requentados: “Aonde eu fui amarrar meu cavalo, quando casei contigo? Tu não sabe satisfazer um macho, eu não troco a Maria Ternura por ti! Tu é uma puta sem-vergonha!”… Diante do silêncio da esposa, invariavelmente ele partia para cima dela como uma fera indomável. Puxava-lhe os cabelos e cobria-a de tapas. Muitas vezes, surrava-a com o cinto que trazia à cintura. A filha, atraída pelo barulho, sempre vinha correndo ao socorro da mãe, mas nada podia fazer; quase sempre terminava caída no cimento duro e frio da cozinha. Às vezes, o sangue lhe brotava do pequeno e afilado nariz. Com o passar do tempo, temendo pela integridade da filha, ela optou por se evadir, já não esperava pelo momento da flagelação. Ao terminar de esquentar o jantar, cuidava logo de pular a janela que dava para o quintal, que, por prevenção, resolvera deixar apenas encostada. Nas primeiras vezes, ele vinha em seu encalço, mas ela logo pulava a cerca do quintal que dava para a rua lateral. Ele, indisposto a tamanho esforço, como um cachorro que deixa de correr atrás de uma presa que se mostra mais veloz, desistia