À Pressão, os feijões

Feijões, conto de Melissa Vasconcelos para a revista da Academia Ubajarense de Letras e Artes

Por Melissa Vasconcelos Minha filha, Não estou a entender nada do que tu me dizes. Onde estou, sou cinza. Mas para me dizer maior, Me chamo de prata. O cheiro é de indústria. Meu pescoço aumentou em largura e diminuiu em comprimento. Meu olho está arqueado como o olho de um monstro. E nossas colunas agora são infinitamente tortas. Se puder fugir desse já, fuja. Vocês da frente estão condenados a estarem atrás. Laudo de besta é ganhar coice e ser marcado por um trem de ferro. É por isso que tenho ficado esfolado: não sou eu quem sou besta, besta é quem me esfola. E eu perco a vida sendo esfolada, quem aparentemente ganha também é quem me esfola. Mal sabe o que esfola que morrerá por igual esfolado. Estou cansada de desejos que me criam ofertas ou demandas. A primeira esfera acabou no vai e vem dos produtos. No mesmo circo, comercializamos a nossa carne como um objeto. O desejo não satisfaz a vontade da vida, apesar de oferecer espectros ao novo. Feitas as procuras até então, acho que muito se houve do eu; pouco se houve de nós. Esgotou pois a água que procurava os rios dos envelopes. Joaquina completava dezenove anos naquela tarde de alvorada. Ao retornar do Mercado dos Pinhões, trazia alguns apertos na cabeça – vinham de frases intermináveis que colidiram nos acordes e nos versos. Além da marca de ferro, vista a queimar os cascos do cavalo, havia um cheiro tão impregnado de feijão cru, a ponto de causar náuseas para a socorrida de um quarto de copo no calendário. Desde muito pequena, lá nos seus oito anos, pungia a reclamar das dores articuladas entre as duas pernas sustentadoras de entulhos. Como a dupla se colocava abaixo do quadril, acreditava em sua função de ser escala fezes. Mas isso não cabe, de todo modo, no caroço do feijão cru; o atormentador de narinas e desacatos aos bons modos. Quantos feijões bons eram maus em conduta? É certo – não transpareciam ou apareciam semelhantes aos alunos universitários que via de poucas ou muitas regras – fica ao dispor de quem se entonar – eram ensinados a disciplinar os egos estourados nos seus palanques invisíveis; qualquer um deles seria rente para mostrar vielas de sobrevivência. Por isso, quase toda a vida parece ser andada por linhos que perderam suas linhas. Os bons aprendizes se matavam nessa caça ao grande. Foi ali que a menina perguntou se o monstro dos fitos não seria, em verdade, um grande. Pois a fim de ficar com feijões duros e crus, Joaquina notava ser mais ardida a convivência para as conveniências de cheirosos – e todos eles fediam para Thoreau – do que o fedor dos petrificados da esquina. A putrefa e a pedra são irmãs. Ambas são filhas das margens, as tangentes criadas pelo medo dos mesquinhos e seus respectivos palanques. A panela de pressão, destinada a gestar todos os feijões podres, achava-os tão singulares que foram eles o prato principal do jantar das seis. Josué comia os caroços, mastigava os caroços, sempre forçado a não cuspi-los por conhecer a dor da fome; porém, reclamava desenfreadamente de todos os grãos degustados. __ Estás reclamando de que, Josué? __ Dos feijões podres que você me serve. __ Por que reclamas de um podre de casca se sua alma é vizinha dos ascos reconhecidos pelo seu paladar? O bom dos feijões era que nenhum dos seus caroços necessitava de oferta ou demanda. Por serem podres, nunca seriam produtos. Exceto para Joaquina – ao se reconhecer uma filha podre, consumia todas as mercadorias podres prestes a se enrolarem nos lixões. A fila dos concursos, eternamente mais larga do que vasta, carregava uma sacola de vazios. Os feijões daquela época, por isso, estavam em irmandade de sabores à podridão. Joaquina sentia o sangue quente do caldo feito percorrer suas veias. O feijão podre e o humano eram irmãos de sangue – puros e carnais. Uma das distinções mais sublimes foi o fato da tentativa infame que o bicho de uma cabeça, dois olhos, duas orelhas, uma boca e um cérebro desenvolvido persistiu ao craquelar a imortalidade. Depois disso, Joaquina concluía que até o feijão descartado era menos podre do que um humano não velado – desse modo, porque sendo velados, já estariam puros; isto é, mortos. A elevada triturava os feijões para lembrar-se dos feijoeiros. Eram nessas raízes de onde saiam os pães e a semente da fruta que se consumia após o almoço, repartida em nove pedaços. Os feijões estragados e as goiabas maduras brigavam com frequência de presentes entre os pratos de arroz mal cozidos. Joaquina pensava sobre perdas. Achava ganhar o pensamento e um único caroço bom para morder. Tanto o caroço quanto a memória foram embora – não queriam ser lembrados, nem recordados naquele milésimo. Pilhas corriqueiramente haviam nas cabeças da elevada mais baixa da rua Dragão do Mar. Ao pisar na calçada, para Josué, era módico que acontecesse o mesmo registro. Ser queimado pelo sol, marcado por um amontoado de sacolas e sobreviver de suprimentos que nutrem os organismos como carcaças ou depósitos que deveriam se alimentar. E do outro lado do trânsito, para Joaquina, que estava muito embaixo enquanto para cima, tudo era um pouco mais pilhado: primeiro um olho aberto, depois um neurônio enterrado. Rodavam os dias como se estivessem em cima de um transporte de cascalhos apressados. Ela bem pressentia que só jovens tinham pressa de tartarugas.

Homenagem a meu avô Ditimar

Ditimar Vasconcelos, crônica de Melissa para a revista da Academia Ubajarense de Letras e Artes

Por Melissa Vasconcelos Para a maioria das pessoas, este nobre cidadão era alcunhado de Seu Ditimar, conhecido também como “Bonequinho”, em virtude de sua beleza – como meu pai, seu genro, costuma muito me dizer, rindo. Ditimar de Oliveira Vasconcelos nasceu em 29 de outubro de 1932. Filho de Raimundo de Oliveira Vasconcelos e Augusta Lima Vasconcelos, estudou no Seminário, em Tianguá; trabalhou como soldado na Base Aérea de Fortaleza, e durante muitos anos, foi caminhoneiro, além de ter sido maçom na Maçonaria de Ubajara. Porém, para mim – e para os meus inúmeros primos – ele era o vovô Ditimar. Todos os dias, acordava cedo, sempre o primeiro da casa a se levantar, para depois caminhar até o bondinho. Saía, simpático, pelas ruas. E eu, que tive uma convivência muito estreita com os meus avós, desde pequena, ia junto com o meu avô, de mãos dadas, fazer a feira na barraca da Dona Diva, ao mercado de carne do Seu Lista, comprar castanhas-do-pará nas barracas do antigo mercado de Ubajara, que hoje, converte-se em um calçadão de eventos. Até os meus dez anos, foi assim: a minha vida repleta da vida do meu avô. Nos meus cinco anos de idade, tempo em que fui aluna do infantil 5 do Instituto Nossa Senhora de Fátima, guardo uma memória cravada em meu peito – meu avô foi me buscar na escola, no final do dia, às 17h. Usava uma boina, sapatilhas, uma bermuda e uma blusa social clara; como de costume, usava óculos, e mostrava seus bons e autênticos cabelos brancos. Ele se pôs no centro da porta de entrada da minha sala, baixando a cabeça por baixo da boina, quando minha professora interrompeu a aula e disse: “Melissa, quem é aquele ali que veio te buscar?” Eu, criança, vendo aquele senhor abaixando a cabeça para não ser visto, demorei a reconhecer, e tanto meu avô quanto a professora riram. Foi ali, ao ouvir o som da risada do meu avô, e já tendo o reconhecido ao observar suas pernas, que eu o percebi, com muita alegria e a pureza de amor que somente uma criança é capaz de sentir: “É o vovô!”. E corri para abraçá-lo. Aquele tinha sido um dos finais de tarde e dia de aula mais especiais, se não o mais especial, para mim, pela simples presença do meu avô, que me buscava em sua F-1000 amarela. E como eu poderia esquecer da F-1000 amarela? Quase todos os dias – senão, todos os dias – meu avô, quando eu não estava em sua casa visitando ou passando o final de semana, ia nos visitar na casa dos meus pais, e o barulho do motor do seu carro era inconfundível, assim como o som da buzina. Eu reconhecia de longe, mesmo antes do carro estacionar na frente da casa. Ali, aprendi a distinguir os sons, os motores e reconhecer o carro de cada pessoa, o que me faz, até hoje, saber sobre cada visita que chega, antes que toquem a campainha. Sempre quem ajeitava minha bicicleta era meu avô: comprou uma bomba para encher, semanalmente, os pneus de minha bicicleta. Comprou, também, uma capinha acolchoada para que a cela não me deixasse assada. Por fim, para que a homenagem não se converta em um livro de romance, meus avós – em cada episódio que estava presente meu avô, também estava junto minha avó – me levavam à missa todos os domingos, às 7h, e ainda que não fossem à Igreja todos os dias, em todos os dias, assistiam ao terço e à missa, aos finais das tardes, às 18h. Nessas tardes, eu deitava entre os meus avós: meu avô sempre do lado esquerdo da cama, minha avó, do direito, e eu, no meio, entre os dois, que faziam, cada um, carinho ora em minhas pernas, ora em minha cabeça, enquanto nós três estávamos em reza. Nunca houve uma vez que eu não andasse na rua com meu avô que não fosse de mãos dadas, e com ele falavam, e a ele perguntavam – “é sua netinha, Ditimar?” “Sim, é minha netinha, a Melissa.” Cresci conhecida, entre a maioria, como a neta do Seu Ditimar e da Dona Fransquinha, desde criança, com muito amor, carinho e orgulho. Grande cidadão Ubajarense, faleceu em 08 de dezembro de 2018, na Santa Casa de Sobral, mas jamais será esquecido no coração de seus parentes e amigos. Antes que meu avô entrasse na UTI, tive a oportunidade de ser abençoada por ele, pela última vez – “Deus te abençoe” foram suas últimas palavras que ouvi em vida. Meu amor e respeito por meu avô são o resultado do amor que recebi do famoso Seu Ditimar durante todo o meu crescimento, e em mim, sempre haverá, não só fisicamente, mas internamente, a tatuagem do seu legado. Como forma de eternizar a memória de meu avô, intitulou-se, em 2019, a Rua Ditimar de Oliveira Vasconcelos, em Ubajara, que, conhecido pela sua generosidade, bom humor e enorme coração, deixou uma marca indubitável como cidadão Ubajarense. Tive a honra de crescer e passar minha infância com ele, ouvindo os sermões: “quem fica de ‘coca’, papoca!” ou “eu só vou sair dessa mesa quando tu raspar esse prato, eu duvido que tu coma tudo”. Gostaria muito de que ele ainda estivesse vivo e lúcido, que tivesse participado e visto o lançamento do meu primeiro livro na Câmara Municipal. Que visse minha transição de crescimento completa, que tivesse me acompanhado nos meus primeiros amores e experiências, o que eu tenho certeza que ele seria vigilante e protetivo, que me orientaria – eu, provavelmente, seria chata como uma adolescente, mas sua orientação para me proteger pesaria mais que minha chatice. Porém, agradeço pelo tempo em que consegui conviver com ele, e espero que ele esteja observando o que acontece, de onde quer que esteja. O legado que escolho carregar do meu avô é este: o amor, a honestidade, o coração grandemente generoso e a bondade. Sinto-me feliz e orgulhosa