Precisamos de mais padeiros espirituais

Padaria Espiritual, artigo de Monique Gomes para a revista da Academia Ubajarense de Letras e Artes

Por Monique Gomes No fim do século XIX, o mundo estava passando por grandes transformações. Van Gogh pintava “A Noite Estrelada”, o cinema no Brasil dava os primeiros passos e vivíamos os impactos da recente proclamação da República. Enquanto isso, um grupo de jovens inquietos de Fortaleza, Ceará, decidiu fazer sua própria revolução, só que no campo das artes e da literatura. Assim nasceu a Padaria Espiritual, uma agremiação cultural que marcou a história do Ceará e do Brasil. Tudo começou em 1892, no Caffé Java, localizado na histórica Praça do Ferreira. Ali, escritores, desenhistas, pintores e músicos se reuniam para trocar ideias, compartilhar críticas e, acima de tudo, fomentar o gosto pela literatura. Era um tempo em que a capital cearense vivia um certo marasmo cultural, e os jovens membros da Padaria queriam agitar essa realidade com ideias inovadoras. Entre os fundadores estavam nomes como Antônio Sales, que teve papel fundamental na estruturação do grupo. A proposta da Padaria Espiritual era, antes de tudo, bem-humorada. Os membros adotaram uma identidade inspirada no universo das padarias: o presidente era o “Padeiro-mor”, os secretários eram os “forneiros” e os sócios eram “amassadores”. As reuniões eram chamadas de “fornadas”, e a sede do grupo ficou conhecida como “forno”. Mas, por trás dessa leveza, havia um forte compromisso com a arte e a literatura. O que os padeiros faziam além de “pão”? Os membros da Padaria Espiritual tinham uma postura provocativa e irreverente. Eles criticavam tanto a burguesia, que vivia alheia às artes, quanto os intelectuais que viam o progresso apenas como industrialização e modernização econômica. Para os padeiros, o avanço de uma sociedade passava também pelo florescimento da cultura. No começo, os encontros eram marcados por debates regados a bebida, fumo e muita conversa engraçada. Mas, com o tempo, a agremiação tomou um rumo mais sério, passando a produzir conteúdo literário e a incentivar a publicação de livros. O movimento também se tornou um espaço de experimentação artística, onde os participantes podiam exercitar a criatividade sem as amarras das convenções tradicionais. Isso fez da Padaria Espiritual um marco na história cultural do Ceará, influenciando gerações futuras de escritores e artistas. “O Pão”: a voz da Padaria Espiritual Para levar as ideias ao público, os padeiros criaram um jornal chamado “O Pão”. Com esse nome sugestivo, o impresso buscava “alimentar” o povo com literatura e arte. O periódico era publicado aos domingos e se tornou um sucesso em Fortaleza. O jornal trazia seções diversas e publicava poesias, contos e crônicas. Ao todo, foram lançadas 36 edições, que circularam até mesmo em outras partes do Brasil e em Portugal. Cada membro da Padaria tinha a responsabilidade de enviar exemplares para diferentes capitais brasileiras. O legado da Padaria Espiritual Embora tenha durado apenas alguns anos, a Padaria Espiritual deixou uma marca indiscutível na história cultural do Ceará. Seu modelo de associação literária inspirou outros grupos e influenciou o modo como a literatura e as artes passaram a ser vistas na região. Hoje, a história da Padaria Espiritual segue viva, com sua memória preservada em arquivos históricos e pesquisas acadêmicas. Seu espírito irreverente e sua paixão pela arte continuam a inspirar novos escritores e artistas cearenses.

Zé Preto, o dançarino do mercado público

Zé Preto, artigo de Edmundo Macedo

Por Edmundo Macedo (in memoriam) Quase todos os dias, Zé Preto dava presença nas bodegas (mercearia) do Mercado Municipal de Ubajara. Homem simples, descontraído, olhos ligeiramente castanhos no rosto negro davam-lhe um charme raro. Contava e ouvia histórias valentes em defesa dos oprimidos. Reclinado nos balcões das bodegas, conversava sobre o inverno, a seca e questionava os preços do café, feijão, milho, farinha, rapadura, gado leiteiro e para corte, plantio e colheita do CAROÁ (planta de fibras têxteis) lá pras bandas do Carrasco. Entre um trago e outro de cachaça cajueiro do sítio dos Pereira, o assunto de maior atração, era o momento político. José Preto foi um fervoroso e fiel amigo, do Major Pergentino Costa, chefe político de liderança comprovada em toda a serra da Ibiapaba. Este simpático homem vestia-se à capricho. Porte elegantérrimo, exibia feliz, camisas, calças, paletó e gravatas no mais alto estilo da época. Nos dias frientos, ostentava um capote preto (casaco comprido que fazia parte do uniforme militar), não esquecendo o chapéu-côco sobre os cabelos meio grisalhos. Quando aparecia à rua 31 de Dezembro, rumo ao comércio local, seu andar firme parecia um príncipe indo ao encontro de uma princesa Muzunga de raça nobre. Gostava de jogar baralho com o seu grande amigo e protetor Major Pergentino Costa, sem dúvida um dos filhos de Ubajara merecedor de uma estátua na Avenida principal da cidade. Seu amor a Ubajara faz parte da história. O carismático Zé Preto teve como vício e feitiço maior, a dança. Bailava todos os ritmos numa sintonia de passos e movimentos. Não perdia um SAMBA (nome dado às festas nos sítios àquela época). Em salões enfeitada com papel crepom, bandeirolas e laços de fita, a festa não tinha hora certa para terminar. As latadas e terreiros de chão com barro batido ficavam apinhados de dançarinos. Das 8 da noite até madrugada Gonçalo Galvão, o “sanfoneiro” mandava som no baião, samba, forró, chote que rolavam soltos pelas quebradas da serra. G. Galvão e seus dois companheiros (um no pandeiro e outro no ganzã) não dispensavam a quente e saborosa Cajueiro. Haja fôlego para acompanhar os dedos ágeis e precisos nos botões niquelados da sanfona alaranjada do G. Galvão. Cadê o tira-gosto? – gritavam panderista e ganzarista. De repente, surge o maior festeiso e dançarino daquelas paróquias, Zé Preto, todo sorridente, felicidade nos olhos, trazendo nas mãos uma bacia de ágata tamanho médio. Dentro dela, pedacinhos de avoantes chumbadas na véspera, bem torradinhas misturadas na farinha da Serra Grande. Peça um chote, Zé Preto! – pedia Carolina do Pitanga. Num abrir e fechar dos olhos, o chote com G Galvão. Ninguém ficou sentado e nem de pé, todos no salão. A poeria subia rápida com cheiro de terra molhada. Os casais discretamente abraçados no vai-e-vem do chote, exclamavam à meia-voz: “É hoje, Manoel! É hoje, Antônia! Tá bom demais”. Ao término da quintura do chote, uma pausa. Palmas e vivas, formas de agradecer daquela gente humilde e bonita, espalhada na região de clima mais saudável do nosso Ceará. Convivi com este homem honrado e estimado. Em certa ocasião, falou-me: Deixe que eu leia sua mão direita, meu jovem! Ao esticá-la na posição certa, vi que estava amarelada. Rápido pensei e concluí: foi a manga doce que comera na bodega da minha Tia Lúcia. De imediato, apresentei-lhe de novo as linhas da minha mão. Zé Preto, bem calmo, revelou: Meu jovem Edmundo, irás viver um bocado. Nunca lute contra os indefesos; a luta será desigual. Fiquei em silêncio, baixei a cabeça, olhei o chão verde e senti emoção de viver mais um pouco. Os anos caminharam rápido, Um dia em São Paulo, soube que o romântico e simpático Zé Preto havia nos deixado apra sempre. Tenho absoluta certeza que ele está junto aos magos-advinhos em céu todo especial. Zé Preto! Antes que termine este “recordar”, escute este recado: “As dançarinas Pitanguenses, Pavunenses, Olindenses, Gameleirenses, Amazonenses e Itaperacimenses nascidas no município de Ubajara enviam-lhe de coração, eternas saudades. Até hoje sentem falta dos teus passos mágicos e estonteantes ao bailar o samba, o baião, o forró, a valsa e nosso puríssimo chote. Zé Preto! Estou pertinho dos 70 e uns anos. Vivi um bocado; quero mais, adoro a vida. Tuas luzes.