21 anos em um dia

Ainda Estamos Aqui

CRÔNICA

Por Melissa Vasconcelos

3/16/20254 min read

21 anos em um dia, por Melissa Vasconcelos
21 anos em um dia, por Melissa Vasconcelos

Na noite do dia 02 de março de 2025, a população brasileira abre o champanhe para receber o reconhecimento de milhares de degraus sobrepostos à construção da cultura brasileira. “Tem maçã, laranja e figo, banana, quem não comeu? Manga não, manga é o perigo, quem provou quase morreu”. Ora, Juca Chaves! Não haveria trilha sonora mais oportuna para discorrer acerca da premiação do Oscar da noite do domingo passado.

Para assistir à premiação, preparei a receita do suflê de queijo do livro de receitas da Eunice Paiva, em meio ao clima chuvoso da serra e aos ânimos carnavalescos de Ubajara à flor da pele. Se bem que, na minha cútis, o espírito de bloco e avanços do carnaval não pulsou muito bem esse ano. Porém, para o dia do Oscar, fazendo sol ou chuva, estando eu doce ou agridoce, deleitei-me a me concentrar em meu bom humor, pois não é sempre que se vê uma múltipla premiação - Cinema, História, Literatura, Direito - em uma só estatueta para a Arte Brasileira.

A receita do suflê de queijo foi retirada do próprio livro “Ainda Estou Aqui” , que originou o filme de igual nome. Logo pronto, servi-me com o suflê quentinho, para que não murchasse. A preparação do suflê foi um afago ao meu peito, como o restante do meu dia 02 de março assim esteve em suas horas anteriores - pela manhã, recebi uma bolsa que minha madrinha de batismo comprou de presente para meus trabalhos e estudos, e ganhei uma linda blusa verde de crochê de minha madrinha de crisma.

Os presentes, sejam de coisas ou de pessoas, precisam ser postos à mesa ao saírem de seus fornos, tal qual ao suflê de queijo, para que não murche. Todo amor, se não servido quente, murcha. O amor é como um suflê de queijo, fogoso e saudoso, bem servido para um dia de chuva. A você que lê, quando ganhares um suflê de queijo, não se demore a degustá-lo, para que não perca a chance de sentir a maciez de uma deglutição sem atrasos, de um paladar sem jogos.

Não oportunamente, a celebração do Oscar caiu no domingo de carnaval, o período do ano mais comemorado pelos brasileiros em suas diferentes facetas e formas de articulação. Dessa vez, estendeu-se às vantagens para festejar a Cultura Brasileira, a Literatura Brasileira, a formação política, a História, os Direitos do nosso torrão: Marcelo Rubens Paiva, filho da advogada de Direitos Humanos Eunice Paiva e do deputado federal Rubens Paiva, escreveu geniosamente a obra “Ainda Estou Aqui”, celebrada pelo prêmio Jabuti de Literatura em 2016, na âncora do mundo das Letras, e, agora, quase dez anos depois, adaptado para abrir luz aos olhos e música aos ouvidos - atentos e desatentos - da população brasileira e internacional, em sua adaptação cinematográfica dirigida por Walter Salles de mesmo nome “Ainda Estou Aqui”, com sua resplandecente premiação no Oscar.

Entre os anos de 1964 a 1985, parava a sociedade brasileira e se amortecem os juízos e os letrados para o abate dos corpos, o derrame de sangue, as bocas silenciadas, as famílias destruídas e as vidas subtraídas em favor de um regime sanguessuga. Não se abatiam somente as vidas dos deputados federais, defensores, escritores, médicos, músicos: retiravam-se as vidas dos filhos, dos pais, dos irmãos, do alicerce de famílias inteiras.

Quando Marcelo Rubens Paiva perdeu seu pai para a repressão ditatorial, tinha apenas 11 anos ao ver, em 1971, a vida de seu pai sendo reduzida como se subtrai de um número de uma conta de matemática, sem retorno de notícias, sem documentações; ao ver sua mãe em luta, tomando as rédeas de uma família de cinco filhos, perdendo o seu grande amor e companheiro em meio a enxurrada de sangue jorrado nos asfaltos da sociedade brasileira, à época.

Com certeza, a raiz da veia literária de Marcelo Rubens Paiva nasce da sensibilidade em meio a brutalidade - a manifestação artística de Marcelo por meio da escrita assemelha-se à floração do Mandacaru, sobrevivendo às secas em virtude da capacidade de reter água. As palavras de Rubens Paiva nasceram de socos no estômago, como se resgata da literatura lispectoriana, e de tantos socos e ferros ornamentados ao percorrer da estrada, transborda-se a retenção de palavras em arte resistente, em livro. A sensibilidade provém das rudezas, e a brutalidade provém da ausência de sensibilidade.

Por isso, toda a arte costuma desaguar das faltas, e toda a seca costuma advir dos excessos. A quem mais falta, mais nascem mais frutos, ainda que estes demorem a frutificar. Admiramos hoje punho de um escritor que denuncia, por meio de sua brutal sensibilidade e de sua sensibilidade brutal, o rasgo de inúmeras famílias destruídas, o grito sufocado de sua mãe, a dor de cinco filhos em desespero e desamparo.

Celebramos a força do cinema e da autenticidade brasileira, e mais do que nunca, lembramos da nossa história como primeiro suplente do juízo. O Oscar de melhor filme internacional para “Ainda Estou Aqui” é de Marcelo Rubens, de Eunice Paiva, de Walter Salles, de Fernanda Montenegro, de Fernanda Torres, de Selton Mello, é Nosso; sobre as nossas lutas, os nossos Direitos, as nossas conquistas, a nossa história, o nosso jeito de escrever, o nosso jeito de atuar, a nossa cultura plural: é para nos lembrar que ainda estamos aqui - não aos prantos, mas sorrindo, como símbolo de força, embate e resistência. Fomos para a bancada de jurados do Oscar o que um suflê de queijo quentinho é para os cinco sentidos dos corpos e um amor sem jogos é para o coração.

Melissa Vasconcelos