A Cegueira Humana
Artigo escrito em 1915.
ARTIGO
Por Manoel Miranda
1/6/20255 min read


Paira agora sobre a humanidade uma como a maldição que a infelicita e endoidece. Parece que dos vastos páramos de ignoto se desencadeou nestes dias contra o terráqueo orbe um furacão violento e pestífero que o convulsiona e abala até os mais sólidos fundamentos.
A sociedade que, segundo o mais espontâneio vate da raça latina, Guerra Junqueiro, parece sofrer de escruphulas, hoje nos paroxismos de uma agonia enorme, commete loucuras e insânias não vistas, emquanto ao de cima, do comoro verdejante da Idéa nova, o philosopho-a sciencia objectivada, estuda-a e analysa-a serenamente, inda que por vezes cruze os braços desalentado; constrangido pela impossibilidade de superar as desgraças tamanhas.
Elle vê a humanidade na marcha acelerada para a ruína completa e conhece as causas essenciais das mazellas que afligem, mas infelizmente não acha meios de afastá-la do negro precipício. Sente-a submergir-se pouco a pouco no pavoroso inarnel do nirvana silencioso, e não póde estender-lhe a mão protetora que a impeça de cahir nem dar-lhe o apoio que a restituia ao coruscante sol do progresso e da paz mundial, ao sansara do trabalho que constitue a existência terrena.
Evoca então reminiscências pagãs, quando não havia de artificial mais que a tosca pedra mal lavrada como auxiliar do homem rudimentário, mas reinava a harmonia geral e a concórdia não tinha soluções de continuidade naquelas boas e primitivas gentes pharaonicas.
Remonta a esses dias obscuros do passado longinquo, quando a annosa arvore da civilização não chegara ainda a cobrir com a sua ramalhuda e farfalhante fronde magestosa as terras todas do Oriente e Ociente, e os homens lhe não buscavam a sombra deliciosamente confortável mas perigosamente intoxicadora. Vê, in mente, o seu desenvolvimento agigantado, acompanha-lhe o desdobramento do caule augusto, o renovamento das suas células vibratis, a coloração de sua folhagem imponentíssima, a opima frutificação de sua floração rescendente e multicor. Vê o cuidado do homem, no evoluir das idades, festejando-a e regando-o com carinhoso afecto, a cada fruto sazonado entoando hymnario apotheótico.
E mais tarde doces pomos que abundaram e que eram as admiráveis combinações da dhímica, as invenções assombradoras, a aplicação da eletricidade, o telégrafo, a Imprensa, o phonografo, e mais o cinema e o balão e ainda mais o radio, e os homens a se vangloriarem e se embevecerem no saborear de tão doces maçãs, olvidando a família e olvidando o amor, esquecidos de Deus e do futuro...
Porém, o institucionalismo de que se cercaram, necessários à índole impetuosa dos avoengos remotos, prende-os por fim ferreamente nos grilhões dos preconceitos fúteis, e mais os aperta na engranagem complicada que o oleo dos paragraphos lubrifica constante.
Neste circulo atróz que os não deixa moverem-se e coareta-lhes toda a liberdade de agir e raciocinar, têm os homens até dificuldades de respirar o por um hausto refrigerante de oxygenio vital degladiam-se e esphacelam-se em pugilatos tremendos, de todos os dias e de todos os instantes, no recesso do lar e na vastidão da praça pública, na aldeia mais pacata e na capital mais populosa. Por um sopro deste ar que é o metal sonante que lhes proporciona ephemeros prazeres e mesquinhas honrarias, viu o pensador dividirem-se os homens em facções distintas e os viu abrirem a luta que não mais terminou.
A arena onde se batem os gladiadores como feras na disputa da presa sangrenta, veiu de chamar-se política. De um lado e de outro, as hostes aguerridas e reciprocamente, mortalmente odiadas. A vasta família humana separada em dois partidos inimigos, entre os quais a barreira da diciplina se interpõe, se avoluma imensa, altiva parecendo dizer. Parae. Cada grupo reze com fervor o seu credo e a sua ladainha com muito mais fé do que se reza agora o Pater Noster do meigo Nazareno.
A imprensa, que foi o factor máximo do progresso e da instrução dos povos, desvirtuada nos seus fions, prostituída, às vezes, é a trompa altisonante que apregoa as cirtudes e as sudidades de ambas as aglomerações contendoras na razão directa do quadrato dos interesses alimentários e na inversa do mal que se deseja fazer.
Do alto da sua turris ebúrnea, onde se isolara com os raros reis adoradores da Arte, o pensador vê tudo isto com o coração contristado e lágrimas nos olhos. Chora por verificar o seu esforço perdido, nancia heroica e philantrophica de apaziguar os homens desvairados. Ante o estadio exauthematico agudo desta phase dolorosa de irritação extrema por que passa o organismo social entumecido da purulência das paixões descomedidas, utilisar-se não pôde o desgraçado asceta do linimento da Idéa.
De lá vê elle o desfilar em baixo desse cortejo espetaculoso de tyranos e chefetes imbuídos das mesmas velleidades do mando e invulnerabilidade de Achilles. O tyrano, do seu solio aurilavrado acenando às turbas escravisadas; o chefete, ignorante e fátuo, de sobrecenho terrososo, no seu rossinante escanifrado, com um largo gesto de D. Quixote maluco, conduzindo o eleitorado inconsciente pelas veredas do crime e do deboche, ao toque mágico de varinha de Panurgio. Em sua imaginação exercitada de psycologo, como em chassi de fidelíssima Kodac, gravam-se indelevelmente todas as cenas das miserias humanas, e lá se ficam numa galeria obumbrada que ele contempla a todo instante entrestecido.
Mas não desanima o visionário do Bem, o utopista da Paz, o doutrinador secular; a cada esforço perdido em prol da unificação das raças e do extermínio dos falsos, loucos, pueris preconceitos sociaes, mergulha os dedos descarnados nas mellenas grisalhas e aperta a fronte nas mãos murmurando consigo que nem tudo está perdido ainda.
Elle sonha com um dia venturoso em que, da amalgama de philosophias que há semeado evanescente, uma só, forte eterna, verdadeira e pura, surgirá a grande doutrina do Porvir bendita. Sonha... E o propagador dessa doutrina sacrossanta e nova - ella nol-o diz convenvido - bello na sua aureola de graça e de mansuetude divina, será como um novo Christo dos céus enviado à humanidade corrupta senão o próprio Messisas sublime que há mil e tantos anos se dignara vir a ter cá, quando não havia tanto Pilato de borla e tanto César caricato, nem se julgava o homem dominador das águas e do fogo, do tempo e do espaço, mas velhos reis orientaes, barbudos, cavalgavam pachorrentalmente morosos dromedários corcovados e as belas filhas de Israel dormiam profundamente o calmo sonno da inocencia antiga às portas sem taramela das suas choças humildes.
Para esta gravíssima doença moral do homem hodierno, na verdade, cego pelo excesso de luz do século passado, só o elixir da palavra viva de Jesus evangelizadora e forte. Porque se elle não aparece, e logo, a sustar a humanidade na sua carreira desordenada de despenhadeiro abaixo, então é que o tal dia de juíso não tarda, e só nos resta, aprecatarmo-nos com o nosso frak mais novo e a nossa gravata mais chic, para assistirmos ao grande julgamento final, onde tanta surpresa nos espera, vendo os que pensávamos serem bons, serem máos e máos os que pensávamos serem bons.
Quantum mutatus abillo, santo Deus, veremos, neste jury final, voz por Juiz.
Por Manoel Miranda, 1915, texto publicado no livro Memórias de Manoel Ferreira de Miranda, O EMES.
O texto a seguir foi escrito em 1915 por Manoel Miranda e é apresentado em sua redação original, sem alterações em sua linguagem, estilo ou ortografia. Essa escolha visa preservar as tradições históricas e literárias da obra, refletindo o contexto e a forma de expressão da época.
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