À Pressão, os feijões
Trecho da obra de Melissa Vasconcelos.
CONTO
Por Melissa Vasconcelos Gomes
10/23/20244 min read


Minha filha,
Não estou a entender nada do que tu me dizes.
Onde estou, sou cinza.
Mas para me dizer maior,
Me chamo de prata.
O cheiro é de indústria.
Meu pescoço aumentou em largura e diminuiu em comprimento.
Meu olho está arqueado como o olho de um monstro.
E nossas colunas agora são infinitamente tortas.
Se puder fugir desse já, fuja.
Vocês da frente estão condenados a estarem atrás.
Laudo de besta é ganhar coice e ser marcado por um trem de ferro. É por isso que tenho ficado esfolado: não sou eu quem sou besta, besta é quem me esfola. E eu perco a vida sendo esfolada, quem aparentemente ganha também é quem me esfola. Mal sabe o que esfola que morrerá por igual esfolado. Estou cansada de desejos que me criam ofertas ou demandas.
A primeira esfera acabou no vai e vem dos produtos. No mesmo circo, comercializamos a nossa carne como um objeto. O desejo não satisfaz a vontade da vida, apesar de oferecer espectros ao novo. Feitas as procuras até então, acho que muito se houve do eu; pouco se houve de nós. Esgotou pois a água que procurava os rios dos envelopes.
Joaquina completava dezenove anos naquela tarde de alvorada. Ao retornar do Mercado dos Pinhões, trazia alguns apertos na cabeça - vinham de frases intermináveis que colidiram nos acordes e nos versos. Além da marca de ferro, vista a queimar os cascos do cavalo, havia um cheiro tão impregnado de feijão cru, a ponto de causar náuseas para a socorrida de um quarto de copo no calendário.
Desde muito pequena, lá nos seus oito anos, pungia a reclamar das dores articuladas entre as duas pernas sustentadoras de entulhos. Como a dupla se colocava abaixo do quadril, acreditava em sua função de ser escala fezes. Mas isso não cabe, de todo modo, no caroço do feijão cru; o atormentador de narinas e desacatos aos bons modos.
Quantos feijões bons eram maus em conduta? É certo - não transpareciam ou apareciam semelhantes aos alunos universitários que via de poucas ou muitas regras - fica ao dispor de quem se entonar - eram ensinados a disciplinar os egos estourados nos seus palanques invisíveis; qualquer um deles seria rente para mostrar vielas de sobrevivência. Por isso, quase toda a vida parece ser andada por linhos que perderam suas linhas.
Os bons aprendizes se matavam nessa caça ao grande. Foi ali que a menina perguntou se o monstro dos fitos não seria, em verdade, um grande. Pois a fim de ficar com feijões duros e crus, Joaquina notava ser mais ardida a convivência para as conveniências de cheirosos - e todos eles fediam para Thoreau - do que o fedor dos petrificados da esquina.
A putrefa e a pedra são irmãs. Ambas são filhas das margens, as tangentes criadas pelo medo dos mesquinhos e seus respectivos palanques. A panela de pressão, destinada a gestar todos os feijões podres, achava-os tão singulares que foram eles o prato principal do jantar das seis. Josué comia os caroços, mastigava os caroços, sempre forçado a não cuspi-los por conhecer a dor da fome; porém, reclamava desenfreadamente de todos os grãos degustados.
__ Estás reclamando de que, Josué?
__ Dos feijões podres que você me serve.
__ Por que reclamas de um podre de casca se sua alma é vizinha dos ascos reconhecidos pelo seu paladar?
O bom dos feijões era que nenhum dos seus caroços necessitava de oferta ou demanda. Por serem podres, nunca seriam produtos. Exceto para Joaquina - ao se reconhecer uma filha podre, consumia todas as mercadorias podres prestes a se enrolarem nos lixões. A fila dos concursos, eternamente mais larga do que vasta, carregava uma sacola de vazios.
Os feijões daquela época, por isso, estavam em irmandade de sabores à podridão. Joaquina sentia o sangue quente do caldo feito percorrer suas veias. O feijão podre e o humano eram irmãos de sangue - puros e carnais. Uma das distinções mais sublimes foi o fato da tentativa infame que o bicho de uma cabeça, dois olhos, duas orelhas, uma boca e um cérebro desenvolvido persistiu ao craquelar a imortalidade.
Depois disso, Joaquina concluía que até o feijão descartado era menos podre do que um humano não velado - desse modo, porque sendo velados, já estariam puros; isto é, mortos. A elevada triturava os feijões para lembrar-se dos feijoeiros. Eram nessas raízes de onde saiam os pães e a semente da fruta que se consumia após o almoço, repartida em nove pedaços.
Os feijões estragados e as goiabas maduras brigavam com frequência de presentes entre os pratos de arroz mal cozidos. Joaquina pensava sobre perdas. Achava ganhar o pensamento e um único caroço bom para morder. Tanto o caroço quanto a memória foram embora - não queriam ser lembrados, nem recordados naquele milésimo. Pilhas corriqueiramente haviam nas cabeças da elevada mais baixa da rua Dragão do Mar.
Ao pisar na calçada, para Josué, era módico que acontecesse o mesmo registro. Ser queimado pelo sol, marcado por um amontoado de sacolas e sobreviver de suprimentos que nutrem os organismos como carcaças ou depósitos que deveriam se alimentar.
E do outro lado do trânsito, para Joaquina, que estava muito embaixo enquanto para cima, tudo era um pouco mais pilhado: primeiro um olho aberto, depois um neurônio enterrado. Rodavam os dias como se estivessem em cima de um transporte de cascalhos apressados. Ela bem pressentia que só jovens tinham pressa de tartarugas.
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