Diário de um velho
1951
ARTIGO
Por Manoel F de Miranda
1/27/202512 min read


Por Manoel Ferreira de Miranda, 02 de Agosto de 1951. Artigo cedido por Marcelo Miranda.
Hoje, 02 de agosto de 1951, quando completo 65 anos de idade, dou começo a este diário. Se nada poderia eu dizer do passado, menos ainda terei que dizer daqui por diante, que o tempo e a vida que me resta, sei-o é bastante pouco, e muitos são os afazeres que tenho sobre os ombros.
Antes, porém, de dar início a estas páginas anotando as impressões que tiver, e que o farei com toda sinceridade, pois, que aqui falarei de mim para mim mesmo, quero fazer um retrospecto sobre a minha vida pregressa.
Nasci em Granja, a 02 de agosto de 1886, em pleno regime monárquico. Fiquei órfão de mãe aos dois anos, não tendo, portanto, a menor lembrança de minha mãe. É esse desgosto íntimo que me acompanha na vida. Meu pai, Antônio Ferreira de Miranda, contraiu segundas núpcias com a Sra. Joana Carneiro de Aguiar, filha do Sr. Raimundo Antunes de Aguiar e de D. Maria Carneiro Aguiar, passando então a residir no lugar de Canto Grande, propriedade do sogro, do município de Granja, distante duas léguas de Almas, abundante praia esta, em peixes. Neste lugar passei a minha primeira infância despreocupado e feliz, quando contava os meus 12 para 13 anos de idade.
Lembro-me ainda, com saudades, das caçadas que ali fazia, de machado às costas, acompanhada por uma cachorrinha danada por preás, aliás a minha caça predileta. Eu era exímio caçador de abelhas. Nas minhas diárias excursões venatórias, conduzia sempre uma cabaça de gargalho atada à cintura, colhida do oco das umburanas. Certa vez cheguei a descobrir uma colmeia, da qual tirei a vasilha pela boca, simplesmente observando o rumo que tomavam as operárias, quando os pezinhos cheios de barro, alavam-se das poças dos caminhos.
Fui ainda um grande pescador. Quantas e quantas vezes não trazia para o lar, bonitas cambada de peixes fisgados pelo meu anzol mágico! Quando as marés enchiam, naquele rio, cujas as nascentes vinham das Cabeceiras"lá estava eu lépido, à beira d ́água contemplando os graciosos cavalos-marinhos que enfronhados, subiam na corrente.
Certa vez escapei de morrer numa dessas minhas pescarias. Debruçado à borda do rio, de linha amarrada a um dos pés, estava, cochila não cochila, quando senti-me fortemente arrastado para o leito do rio que, profundo, de águas revoltas, ameaçava tragar qualquer vivente. Felizmente, a linha partiu-se, quando já me encontrava com água pela cintura. Algum feroz habitante daquelas profundezas engolira meu anzol, com isca e tudo, levando o pedaço de cordão que procurara trinar mais consistente com sumo de folhas verdes de mangue.
Conhecia bem o métier da pesca, acompanhando os velhos pescadores, pela noite a dentro, na tapagem das cambôas, no estender das redes quando era hora do preamar. Outra cousa em que era perito era no arrancar dos caranguejos dos buracos em que viviam, à sombra das viridentes florestas aquáticas. Sem temos algum passava querosene no rosto para evitar a picada dos mosquito, e, chapinhando na lama, atolando-se até os joelhos, lá se me botava por aquelas paragens inçadas de quaixinis, introduzindo aqui e ali o braço todo nos burados(sic) dos caranguejos, donde os arrastava, enormes, com as suas tesouras aguçadas, até encher o urú de palha de carnaúba.
E os meus andares em busca das frutas silvestres? ... No tempo dos cajús, longe de casa, nuns pés só de mim conhecidos, e que eram os que davam frutos mais doces e cheiroso(sic), que delícia! Na época dos muricis, cuidava bem de uns, colhendo-os, a fartar, por aquelas chapadas sem fim. Quando amadureciam as ubias e as maria-pretas, regalava-me bastante com elas. Não parava quase em casa. Minha vida era no mato fazendo fojos, procurando ovos de nambús.
Meu pai que nesse tempo tinha negócios com José Firmo da Frota, de Granja, tipo de homem empreendedor e progressista, que, se não me engano, foi o primeiro a montar, naquela cidade, uma fábrica de descascador de algodão e fazer embarque de ossos para a França, comprou-me, certa vez, uma espingardinha passarinheira. Com esta arma abati muita avoante nos bebedouros, e muito periquito quando aos pares se beijavam nas moitas de mofumbo.
Nunca me esqueço, porém, e ainda hoje sinto deste remorso, do momento em que imprensada e cruelmente descarreguei aquela arma sobre uma mimosa rolinha fógo pagou, que arrulhava ternamente junto ao filhote, num ninho construído com amor num galho de um marmeleiro, isto e o fato de quase ir matando um dia meu irmão Florentino, quando experimentava brincar o gatilho, fizera com que eu tomar tal aversão à lazánia, que nunca mais dela quis saber.
Do Canto Grande onde passei os primeiros dias da adolescência, guardo saudosas lembranças. Não posso esquecer a velinha Maria Carneiro, sogra do meu pai. Tive nela a minha melhor amiga. Vi nela a imagem de uma verdadeira mãe.
Era ela que me protegia, que reservava para mim os melhores quitutes. Ainda hoje, e já se vão 65 anos, tenho profunda saudade dessa santa criatura. Minhas correrias pelos amplos e planos salgados todas as tardes espantando os aratús que, céleres, metiam-se nos seus furos pela terra a dentro, são inesquecíveis! Ativo, gozando ótima saúde, respirando aqueles ares puros da floresta, banhado de sol, saturado de iodo pelas emanações de águas marinhas, embrenhava-me nas selvas escuras, armando fojes nas veredas dos preás, e as vezes, mergulhando na água quente dos poços, baldeando-a até embebedar as saúnas que ali haviam ficado na baixa das marés.
Muitas vezes estendia-me no chão à sombra de uma árvore qualquer passando horas inteiras a contemplar as nuvens que, no alto, rápidas corriam. Tinha, então, um desejo doido de desvendar o mistério das cousas! Queria saber, conhecer algo. Foi quando se declarou a seca dos 900. A terrível catástrofe estalou, terrível, mas eu só tomei conhecipelo fato de ver a dificuldade com que se adquerida a própria água de beber.
Tínhamos que ir busca-lá no lugar chamado Izidoro, distante de Canto Grande uma boa légua, por uma estrada de areia quente que tostava a planta dos pés da gente. No Izidoro havia uma grande lagoa, farta de piabas famintas que me beliscavam quando eu nela me banhava.
E passávamos então por privações bem penosas! Senti, naquele tempo o efeito terrível da crise climática! Foi quando vi, de perto, o negro espectro da miséria; Os gados de meu pai, como os do velho Raimundo Antunes, foram-se todos, um a um, ou pela morte, ou pela venda a troco de alguns litros de farinha da manipeba....
No fim daquele triste ano meu irmão Vitaliano Miranda que residia nesta cidade de Ubajara, mas naquela era, ainda simples povoação de Jacaré, foi buscar-me lá afim de que eu viesse fazer companhia à família, visto que ele tinha negócios de borracha no Pará onde passava dois, três anos trabalhando. Em aqui chegando, procurei logo acompanhar os meninos de minha idade, nos seus conhecimentos de leitura.
Eu graças a Deus sempre tive alguma facilidade para assimilar o que lia, em Granja, aos seis anos fui chamado de menino prodígio, espantando os forasteiros com desembaraço na leitura que fazia de jornais maiores do que eu depressa consegui, mesmo sem mestre e sem livros, distinguir-me como menino inteligente.
Eram os meus companheiros nessas batidas através do matagal das letras o Pergentino Costa, o Antônio Pereira e Raimundo Magalhães, pai de Raimundo Magalhães Júnior que tanto tem brilhado como jornalista na metrópole do pais.
Já rapazinho sentindo ferve-me os sangues nas veias e tendo a mente cheia de ilusões, procurava aprender, lendo, lendo, desesperadamente tudo o que me caía nas mãos. Os livros do Doca (Raimundo Magalhães), os dos Zeca Pereira, os do Vitaliano Miranda, foram todos por mim insaciavelmente devorados. Infatigável leitor que eu era.... E exercitei o intelecto da faina do charadismo.
Muito moço ainda e com as maiores dificuldades, tornei-me emérito decifrador. Logogrifos e enigmas, ainda os mais duros, eu os matava, ainda que, pra isso tivesse de, como diversas vezes, lê o "Dicionário de Seguier"de cabo a rabo. Esta mento de que a cousa era mesmo preta, pertinácia valeu-me o distinguir-me o "Almanaque das Senhoras", De Júlia de Gusmão, que se editava em Lisboa, com a publicação do meu retrato, acompanhado de elogiosas referências!
Isto encorajava-me a ingressar na imprensa do país, escrevendo em muitos jornais. Tornei-me assíduo colaborador de "O Rebate", de Sobral, cujo redator-chefe era o saudoso jornalista Vicent Loyola. Lembro-me ainda do primeiro artigo que publiquei neste jornal com o título Gisando - uma espécie de charge contra os enfatuados escrevinhadores daquela época.
Outro artigo de que me não esqueço, publicado no mesmo semanário, foi o em que me surgia contra a prática da Esmola, dizendo que ela aviltava a quem a dava e humilhava a quem a recebia, artigo esse que valeu alguns reparos do púlpito, do Revmo. Padre José Tupinambá da Frota, hoje bispo de Sobral meu grande e santo amigo na vida.
Desde então, até hoje, tenho escrito muita asneira na imprensa, não só na capital cearense como em outras por aí a fora. As letras têm sido, sempre foram a minha cachaça! Nelas não tenho brilhado nada, nem pude por elas sair da mediocridade do meu viver, mas o consola-me o saber que o pouco que aprendi devo-o a mim somente, pois nunca fui a uma escola, nem sequer primária e sempre tive que arcar com as dificuldades pecuniárias, de toda ordem, visto que, meu pai, muito pobre nada me deu e nada me deixou.
Assim, desde o verdor dos anos, tive que trabalhar para ganhar o pão de cada dia, nunca tendo tido o menor auxílio de quem quer que fosse. Antes, pelo contrário, coube-me o amparar o meu velho com a sua nova família. Tenho orgulho em proclamar que tive a felicidade de poder dar à minha família o máximo conforto possível com minhas posses econômicas, dando sempre aos meus filhos o melhor exemplo de trabalho e de honestidade.
Redigi aqui 03 jornais:= "A Ibiapaba"de parceria com Craveiro Filho, "O Serrano", fundado por José Vasconcelos e "Gazeta da Serra", é hebdomadário, impresso em tipografia própria nesta cidade. Esta folha fundada em 1925, circulou até 1929. Conquistou a simpatia pública do país, não sendo pouco os jornais que dela transcreviam editoriais. Uma das suas maiores conquistas foi aquela da publicação de um conto inédito do Presidente da Acadêmia(sic) Brasileira de Letras, o nosso brilhante escritor conterrâneo Gustavo Barroso.
Este trabalho intitulava-se "A filha do Emigrante Morubixaba"e foi escrito especialmente para a "Gazeta da Serra". Na tipografia deste jornal editei 02 de minha autoria:= Cousas que Acontecem e "Ceará por Dentro". Do primeiro foi tirada uma segunda edição em 1930, na tipografia de "A Tarde", diário que então, dirigia em Fortaleza. Ambos estes livros lograram críticas favoráveis de Antônio Sales, Gustavo Barroso e muitos escritores nacionais.
Em 1930, fui acometido aqui, a onde tinha vindo a passeio, de forte embolia cerebral, moléstia terrível que ia me arrastando ao túmulo, e de que só escapei devido à proficiência clínica do grande humanitário facultativo Dr. Costa Araújo, a pouco falecido em Fortaleza. Regressando a Fortaleza ainda muito doente, ali passei três meses em rigoroso tratamento sob os cuidados do Dr. Deus dedith Vasconcelos, voltando, depois, a residir aqui em 1931, reiniciando minha labuta comercial, procurando manter de pé o meu crédito, e com esforços inauditos equilibrando as minhas finanças arrasadas.
É que, da minha aventura em fortaleza(sic), saí com as mãos pelo chão. Basta dizer que quando quis de lá voltar, procurei venda para a tipografia e não achei quem desse nada pela mesma. Acabei vendendo-a fiado à firma Coelho Ferreira & Companhia; mas esta, que já estava quebrada, faliu, miseravelmente meses depois. Vim disso tomar conhecimento por um telegrama do advogado Dr. Lincon Mourão de Mattos, que me comunicando o fato, oferecia-se-me, mediante/a paga de quinhentos mil reis, apresentar o meu crédito em assembleia de credores, o que realmente fez.
Aconteceu, porém, que a minha conta foi reconhecida como legal é verdade, mas a massa da firma mal deu para pagar os credores privilegiados e parte dos pignoráticos. Os quirografários, no número dos quais eu me achava perderam totalmente.
Uma série e vicissitudes más caiu sobre mim naqueles tempos. Até meu pequeno negócio aqui que eu tinha deixado em mãos do meu concunhado Mudesto de Alcântara Melo, resultou em prejuízo. Em Fortaleza, deixei estudando no Liceu o meu filho Olavo, o qual felizmente concluiu os estudos, formando-se em Direito pela Faculdade da Capital Cearense. Para conseguir tal, muitos foram os sacrifícios pecuniários que tive que fazer.
Atualmente Olavo reside no Rio, casado já, desfrutando ali das melhores relações de amizade.Tive 21 filhos, que foram pela ordem cronológica os seguintes: Manoel, Mário, Eloisa, Raul e Saul (gêmeos), Olavo, Júlia, Judith, Isaura, Vitaliano, Ernesto, Helena, Antônio, Inah, Josias, João e Joaninha (gêmeos) e Tarcísio. A mãe desta tropa, minha esposa, uma heroína, pois tem resistido a profundos golpes da morte de 14 destes filhos. Agora chora o falecimento do último deles Josias, falecido a 20 de junho de 1951, aos 21 anos de idade.
O desaparecimento recente deste meu rapaz, foi muito sentido pelas circunstâncias dolorosas que ocasionaram. Chegando de Belém do Pará há pouco tempo, logo se manifestou-se o mal que o havia de matar, o câncer. Ignorando tratar desse horroroso, levei-o a Fortaleza, onde foi operado pelo Dr. Luís Gonzaga da Silveira, constatando que se lhe extraiu, tratar-se de tumores malignos. Desde então, ainda que sem esperança de cura, envidamos os maiores esforços no sentido de minorar-lhe o sofrimento. Tudo porém, foi debalde.
O seu estado de saúde piorava dia-a-dia. O seu martírio foi imenso. Conservou a lucidez de espírito até os últimos momentos. Morreu com santo. Finou-se como justo. Nunca se lhe ouviu uma queixa. Talvez, para não nos afligir, só pitada no íntimo, a dor física e moral, e assim era que a todos dizia que ia ficar bom, que em breve estaria andando, passeando.
Agora retorno ao trabalho de todos os dias. Trabalho na loja, dirijo os negócios, mas oficialmente entregue-o aos meus filhos. Manoel (Nezinho) e Antônio (Toinho), os quais são responsáveis pelo bom nome e continuação da firma M. Miranda & Cia.
Volvendo assim as vistas para o passado, vejo que pouca coisa fiz na vida e que bem pequenas foram a minhas conquistas nas letras ou no mundo dos negócios. Tendo-se em vista, entretanto, as poucas ou nenhuma oportunidade que tive, a meu crédito deve-se levar todas as par-celas oriundas do meu esforço. Consola-me saber que tendo vindo do nada e nada tendo tido na vida como prêmio de política ou de loteria, consegui trazer a minha família dentro de um relativo conforto.
E, o que é melhor para mim: aprendi ler sozinho, sem ninguém que me ensinasse sequer o ba-bá. Como muitos cearenses, lá pelas eras do ano de 1905 também fui dar com os costados na Amazônia. Estive no Pará, município de Breves um ano e tanto. Repartimento era o nome do Barracão em que passei essa temporada. Ocupava-o. então. o Cel. Jacinto Leão. Lembro-me ainda, de quando certo dia, banhado de suor e sob chuva, remei desesperadamente contra a maré, impelindo o batelão, dentro do qual, bem repimpado sobre uma tolda protetora, o patrão dormia, rodeado da mulher e das filhas, enquanto eu e outro pobre empregado, fazíamos força, quase botando a alma pela boca.
Naquela ocasião, jurei trabalhar para libertar-me, para não ter que remar para os outros. Politicamente tenho vivido à margem, de certo por não saber acomodar-me aos caprichos partidaristas. Religiosamente, sou um católico desleixado, pois não pratico a religião como a compreendem os devotos. Creio em Deus, mas num Deus superior, muito superior, num Deus que rege o universo e é a inteligência suprema. Não imagino qual a forma que Ele possa ter.
Si é comprido, redondo ou quadrado ou que cor tenha. Si se parece com o homem ou com o leão. Creio na imortalidade da alma, na habitabilidade dos mundos, no poder infinito da verdade, na força incoercível do direito, na inflexibilidade da justiça, do amor desinteressado das Mães, na superioridade da ciência sobre a ignorância, no próprio nada que somos em face ao cosmos.
Intelectualmente, sou, sempre fui refratário à cronolologia, a ponto de muitas vezes ficar em dúvida se este Brasil foi mesmo descoberto em 1500 a tanto de abril e si a República Brasileira foi proclamada em 1889 ou si 13 de maio é o dia da emancipação do negros e se, o grito foi Ipiranga soou deveras num 07 de setembro de 1822 e si a idade de Cristo é 33, e etc, etc,.
Uma catástrofe que sou nesse particular, confesso, contrito e envergonhado. Antes de começar esse diário, que bem posso chamar de "Diário de Um Velho", quis assim, estampar, de relance, algumas passagens de minha obscura existência, desejando que os meus filhos nestas páginas se mirem, como num espelho e tomem os meus exemplos de trabalho e perseverança para prosseguirem na jornada da vida, dignos da pátria e da sociedade. E Faço o ponto neste longo exórdio para começar aos 66 nova história.
Porei de lado quais quer cogitações literárias para, corrente cálamo a ter-me somente ao que for ocorrendo de hoje até o resto de meus dias. Será para mim um passatempo o em que for deixado gravado aqui as impressões que se me forem aparecendo...
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