Galos Insones | Capítulo 1
Confira o capítulo 1 de Galos Insones
LIVROS
Por Walter Parente
10/21/202410 min read


25 de janeiro de 1984. Um velho ventilador de teto espalha mais barulho que vento naquela quente enfermaria de mulheres. Uma menina de nove anos dorme. O sono intranquilo. Vira-se de vez em quando, deixando a mãe preocupada com a possibilidade de que venha sair o cateter, que está preso em um dos braços, por onde lhe são infundidos soro e medicamentos.
Guardiã e atenta, sentada em uma cadeira improvisada, a mãe contempla enternecida a filha. Diligente, desvia os olhos apenas para examinar o frasco de soro; está atenta ao volume e a cada gota que cai. Seguidamente lhe põe a mão na testa. “Graças a Deus, a febre não voltou”, pensa.
Estava ali apenas como acompanhante, mas, quando chegou, recebeu também atendimento de emergência; trazia arranhões e hematomas no rosto, nos braços e no pescoço, havia um corte no lábio superior, o olho direito estava circundado por uma grande mancha roxa, na orelha esquerda sobressaíam três pontos cirúrgicos, postos ali para cingir um corte que dividira o lóbulo ao meio.
Para a lesão maior e mais profunda, não recebera tratamento: uma ferida na alma, cuja dor se tornara intermitente e perturbadora, como era a estridulação dos grilos nas noites invernosas da fazenda. Ela ergue a cabeça, atraída por umas palavras vindas de uma TV suspensa num suporte de ferro preso à parede: “... só assim, teremos liberdade plena!”
Era um político exaltado que, de cima de um palanque, discursava para uma multidão. Políticos e artistas de televisão o sucediam. Eram muitos os discursos, mas todos se encerravam com as mesmas palavras de ordem: “Diretas Já!” De quando em quando, a plateia era focada, podendo-se ler em muitas das faixas exibidas: “Parabéns, São Paulo, pelo seu aniversário!”
A multidão ovacionava cada discurso. Ela sentiu inveja daquelas mulheres que apareciam em meio à imensa plateia. Mostravam-se atentas e felizes. Se estavam ali sorridentes e preocupadas com o rumo do país, por certo, os problemas de cada uma eram de pequena monta, a ponto de serem postos em segundo plano. Todas elas podiam usufruir dos maiores bens: a paz e a liberdade. Podiam ir atrás de seus sonhos.
Ela, não! Sonhar, não podia! Como também não podia livrar-se de seu pesadelo, do jugo de seu impiedoso marido, que lhes infligia, a ela e à filha, suplícios e privações havia tempo. Sentia-se culpada pelo sofrimento da filha. Muito se lamentava por ter aceitado se casar com um homem que não tardou a se mostrar inescrupuloso e sádico.
Nos primeiros meses do casamento, a lubricidade desmedida inibia a perversidade, mas, com o passar do tempo, a gravidez foi-se acentuando e os desejos libidinosos foram se arrefecendo, sobrando ao marido apenas o espírito selvagem e mesquinho. O sofrimento veio lhe bater à porta, com mala e cuia. A princípio, os suplícios eram amenos e espaçados; ele se contentava em ofendê-la apenas verbalmente; alguns empurrões, só de vez em quando, mas a coisa foi-se amiudando e tomando outro rumo.
As bebedeiras se tornaram frequentes, e as agressões físicas também. O marido não trabalhava. Vivia a dizer que não carecia de trabalhar, que não era jumento para carregar fardos, o bom mesmo era viver do suor dos que tiveram o azar de nascer pobres. Vivia da renda advinda de duas propriedades. Ultimamente cultivava o hábito diário de rumar, após o almoço, para o Bar Pedra Branca, de Lenimberg Benevides, onde se dedicava ao carteado. Dali só saía à boca da noite, indo invariavelmente para o Refúgio do Amor de Mundinha Pedrosa.
Quando, por uma razão muito forte, fugia desta rotina, Mundinha Pedrosa e suas colaboradoras não conseguiam disfarçar o descontentamento; em cada semblante estava estampada a tristeza e o desalento. A desconfiança, isto é, a insegurança, recaía na possibilidade de o fazendeiro ter-se bandeado para o Cabaré da Lolita. “Praga ruim! Cascavel invejosa!”, exasperava-se Mundinha Pedrosa. No entardecer seguinte, quando o eminente cliente aparecia cheio de ânsia, desejando recuperar o que deixara de fazer na noite anterior, a alegria no estabelecimento recrudescia.
As colaboradoras trabalhavam com satisfação; algumas até se esqueciam dos infortúnios que as levaram até ali. Assim, a clientela lhe agradecia pelas raras ausências. Este bem-querer ao cliente tinha uma razão: ele era um benemérito da casa, um provedor. A maior parte da renda que recebia, ele destinava àquele empreendimento, que lhe dava como retorno a imensurável devoção de Maria Ternura, que, apesar do nome, não negava sua predileção pelo amor selvagem.
“Carícia é pra virgem! Umas bofetadas no corpo sempre me aquecem a alma”, defendia ela. Este gosto dissoluto atraía o fazendeiro. Para ele, Maria Ternura, decisivamente, era diferente de todas as mulheres que conhecera, sobretudo de sua esposa. “Ela é uma mulher de verdade. Trepa porque gosta!” O marido regressava para casa quase sempre nas duas primeiras horas da madrugada. E lá estava a esposa para lhe esquentar a comida e ouvir insultos requentados: “Aonde eu fui amarrar meu cavalo, quando casei contigo? Tu não sabe satisfazer um macho, eu não troco a Maria Ternura por ti! Tu é uma puta sem-vergonha!”...
Diante do silêncio da esposa, invariavelmente ele partia para cima dela como uma fera indomável. Puxava-lhe os cabelos e cobria-a de tapas. Muitas vezes, surrava-a com o cinto que trazia à cintura. A filha, atraída pelo barulho, sempre vinha correndo ao socorro da mãe, mas nada podia fazer; quase sempre terminava caída no cimento duro e frio da cozinha. Às vezes, o sangue lhe brotava do pequeno e afilado nariz.
Com o passar do tempo, temendo pela integridade da filha, ela optou por se evadir, já não esperava pelo momento da flagelação. Ao terminar de esquentar o jantar, cuidava logo de pular a janela que dava para o quintal, que, por prevenção, resolvera deixar apenas encostada. Nas primeiras vezes, ele vinha em seu encalço, mas ela logo pulava a cerca do quintal que dava para a rua lateral. Ele, indisposto a tamanho esforço, como um cachorro que deixa de correr atrás de uma presa que se mostra mais veloz, desistia da perseguição.
Ao contornar a esquina da rua, ainda resfolegando, ela ia-se pôr à frente da casa, na calçada. A preocupação maior era com a filha. Ficava todo o tempo a olhar pela fresta de uma das janelas. Guerreiro, o cachorro de Antônio de Paulo, vinha sorrateiramente lhe fazer companhia. Dos quintais, vinham os cantos de galo. Ela não os tolerava; eram cotidianos como seu sofrimento. Um latido se fazia ouvir ao longe, e, de pronto, Guerreiro se punha de pé, à espreita.
Quando desconfiava de que alguém se aproximava, envergonhada, ela corria até a varanda da casa à frente, onde também se protegia dos implicantes serenos da madrugada. Guerreiro latia ameaçador, mas o transeunte, sem lhe dar ouvidos, logo desaparecia em uma das esquinas. Ela e o companheiro voltavam a estar juntos. Antônio de Paulo saía e fechava a porta por fora, estava indo para o trabalho, na Padaria do Quim. O vizinho a olhava, dirigindo-lhe um sorriso morno.
Não podia ajudá-la, pois não queria encrenca com o vizinho. Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher! Guerreiro, sempre servil, agora seguia o dono, cheirando e irrigando os postes que ia encontrando; ela ficava ali, naquele território que o cão companheiro demarcara havia tempo, à espera de que sua pequena viesse lhe dar conhecimento de que o pai finalmente dormira.
Amanhecia e logo ela se punha de pé. Tinha que cuidar de fazer o café e de pôr o feijão no fogo. O marido continuava no seu sono de anjo, despertando apenas quando as réstias de sol que adentravam pelo telhado começavam a se verticalizar. Ao despertar, como se esquecido de tudo, chamava-a e, possuindo o seu corpo sempre permissivo, estuprava-lhe a alma.
A filha, frente à porta do quarto que se fechava, sorria na esperança de que o amor subjugasse a fera. As noites iam se sucedendo, e os suplícios se repetindo. Ela questionava a Deus o porquê de tanto sofrimento, daquela distopia. Teria Ele a castigado apenas porque quisera dar à luz a filha? Teria sido Ele tão impiedoso a ponto de condená-la a um sofrimento sem fim, como Zeus fizera a Prometeu?
O desespero começava a sufocá-la, já não sabia o que fazer, para quem apelar. Lembrou que já havia recorrido àqueles que, talvez, pudessem ajudá-la. Procurado, o padre aconselhou-a a ser mais paciente com o marido, pois uma separação seria muito pior para ela e a filha. Lembrou-lhe o religioso o que dissera por ocasião da cerimônia de casamento: “Que o homem não separe o que Deus uniu!” O padre comprometeu-se a aconselhar o marido, que, procurado, creditou à embriaguez o seu comportamento exasperado, prontificando-se a mudá-lo, mas tudo continuou como antes, de modo que, depois de muito hesitar, decidiu procurar o delegado, que, de imediato, mandou chamar o reclamado.
Naquele começo de tarde, depois de ser admoestado pela autoridade policial, ele não foi ao bar; da delegacia, foi direto para o Refúgio de Amor de Mundinha Pedrosa. Deitou-se com Maria Ternura, mas não transou. Estava irritado, não tinha engolido tamanha ousadia. Regressou mais cedo para casa. A esposa pagou duramente pelo atrevimento.
Espalhados pelo corpo ficaram alguns cortes provocados pela fivela do cinto e, na mente, o eco de uma ameaça: “Se tu voltar a falar com alguém, principalmente com o delegado, ou com o juiz, ou com o promotor, seja lá com quem for, eu te mato, égua safada! Tá me ouvindo? E isto também vale se tu ainda vier com aquela história de separação!” Ela foi se convencendo de que só a ela cabia o encargo de carregar aquele fardo tão pesado.
Na verdade, não podia creditar o seu sofrimento à vontade de Deus; no fundo, estava apenas colhendo o fruto amargo de uma semente que ela mesma semeara. Rendia-se à fatalidade de seu destino. Só não sabia que o pior estava por vir, que não há limite para um sádico.
Mais uma madrugada chegara, e tudo acontecia como esperado: jantar requentado, ofensas verbais, tentativa de agressão e fuga através da janela, mas, ao chegar à frente da casa, ouviu os gritos da filha, que chorava e pedia por socorro. Pela fresta da janela, viu que o marido, de cinto na mão, açoitava a pobre menina. Tomada pelo desespero, começou a bater à porta: queria adentrar em casa; precisava livrar a filha das garras daquele miserável.
A porta logo se abriu, e ela tentou correr em direção à filha. Não pôde. Foi segurada pelos cabelos e, depois de caída no chão, foi alvo de uma série de chutes. A menina gritava, implorando em vão ao pai que parasse. Meia hora depois, ele dormia na cama tranquilamente, enquanto ela procurava acalmar a filha, beijando-lhe a testa e acariciando-lhe os cabelos.
Um fogo lhe queimou a alma e o coração fremiu, ao ver as marcas da violência nas costas da filha; era como se a pequena houvesse sido torturada no tronco, feito escravo fujão. Entorpecida, pegou uma peixeira, que, por precaução, a escondia do marido todas as noites, e foi até o quarto. Ele ressonava e mexia levemente os lábios: parecia sorrir. Não hesitaria, seria daquela vez, deixaria, enfim, de viver naquele estoicismo aparente de esposa subjugada. Erguendo o braço como uma guerreira, mirou-lhe o peito esquerdo. “Bastará um golpe”, pensou.
Um acesso de tosse arrastada da filha segurou-lhe o punho armado; naquele mundo de cão, o instinto mais acurado era o de sempre proteger a cria. Correu até a pequena e assustou-se ao vê-la regurgitar o pouco que comera no jantar. Ao ver vestígios de sangue, ficou apavorada. Desesperada, pediu ajuda a Iracema, a esposa de Antônio de Paula. Depois de alguns minutos, ela e a filha eram atendidas no hospital municipal.
Após a análise das radiografias, o médico atestou que nada demais grave ocorrera com a menina. Um corte na boca fora a origem do sangue expelido. Recomendou sua internação por 48 horas. Ficaria em observação por este tempo, quando lhe seriam ministrados anestésico e anti-inflamatório. Um relâmpago clareia a enfermaria, e um trovão estronda logo em seguida para as bandas do nascente.
Ela lembra-se do velho Totonho, que, nestas ocasiões, dizia: “Isso é o rei Sol soltando fogo pelo nariz e resmungando com raiva, por ter seu brilho escondido pelas nuvens cinzentas”, e acrescentava: “Meninos, vocês estão vendo como estou certo, ao dizer que as mulheres são mais poderosas que os homens?” Com os olhos fechados, ela pensa: “Você estava enganado, Totonho!”“Este calor grande só podia ser chuva”, diz uma enfermeira gorda, que adentrara a enfermaria às pressas, para fechar a janela e desligar a TV.
Após uma sucessão de raios e trovões, a chuva começa a cair fina, e engrossa em seguida. A água escorre pelo vidro da janela, ofuscando-o. Apesar de ainda ser dia e de uma lâmpada de mercúrio estar acesa, uma penumbra invade o ambiente. Com a TV desligada, ela volta os olhos para a janela e vê que a chuva, açoitada pelo vento ensandecido, se esforça para abri-la, querendo talvez um refúgio.
Fecha os olhos e lembra-se dos gritos de sua velha mãe: “Chega, minha filha! Fecha logo as janelas da frente, antes que a casa fique inundada!” Acostumara-se, como sertaneja, a esperar as chuvas com o coração festivo e com a ânsia de quem espera a visita de uma amiga há muito ausente. De repente, lembra que fora a não vinda das chuvas que deu rumo ao seu destino.
Conhecia muito bem a sua história, pelo menos pensava assim. Uma saga que começou no ano de 1958, na segunda grande seca que assolou o Nordeste. Como todos que se sentem desgastados no presente e sem expectativa de futuro promissor, ela volta-se para o passado e, para ver tudo com nitidez, fecha os olhos.
Livro: Galos Insones | por Walter Parente
Galos Insones é um romance envolvente que explora a complexidade da alma humana em um cenário rústico no sertão cearense. Embora pudesse se abrir em um ambiente urbano, o autor utiliza a fazenda e seus arredores para construir uma prosa poética encantadora, onde a natureza, em suas mudanças sazonais, torna-se uma metáfora para os altos e baixos da vida. Em meio a esse cenário, os personagens enfrentam confrontos intensos entre arrogância e humildade, honra e vileza, criando uma trama rica em dramas, cenas provocantes e momentos cômicos. Uma narrativa habilmente desenvolvida aprofunda a expectativa do leitor de que o bem triunfará sobre o mal, e ao final, deixa uma sensação de nostalgia pela Fazenda Santo Antônio e seus habitantes.
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